quarta-feira, 4 de novembro de 2009
No imaginário nacional, quilombo é algo do passado que teria desaparecido do país junto ao sistema escravocrata, em maio de 1888. As denominadas comunidades remanescentes de quilombos ainda causam grande surpresa na população brasileira, quando surgem notícias nos meios de comunicação sobre a sua existência em, praticamente, todos os estados da federação e, que estas vêm, gradualmente, conquistando o reconhecimento e a posse formal de suas terras.
Esta falsa idéia decorreu do fato das comunidades terem permanecido isoladas durante parte do século passado. Foi uma estratégia intencional que garantiu a sua sobrevivência como um grupo organizado com tradições e relações territoriais próprias e, por conseguinte, com direito a ser respeitado nas suas especificidades, as quais foram significativas para a construção e atualização de sua identidade étnica, cultural, reprodução física e social.
Desde então, o pleito pela garantia do acesso a terra, relacionando-o ao fator da identidade étnica como condição essencial, tornou-se uma constante, como forma de compensar a injustiça histórica cometida contra a população negra, aliado à preservação do patrimônio cultural brasileiro em seus bens de natureza material e imaterial.
Introdução
Alterar as condições de vida nas comunidades remanescentes de quilombos por meio da regularização da posse da terra, estimular o seu desenvolvimento e apoiar as associações representativas destas comunidades são objetivos estratégicos que visam o desenvolvimento sustentável destas comunidades, com a garantia de que os respectivos direitos sejam elaborados, como também implementados.
Para tanto, o governo federal cria em 12 de março de 2004, na comunidade remanescente de Kalunga, situada nos municípios de Cavalcanti, Teresina de Goiás e Monte Alegre, no estado de Goiás, o PROGRAMA BRASIL QUILOMBOLA, como uma política de Estado para as áreas remanescentes de quilombos, abrangendo um conjunto de ações inseridas nos diversos órgãos governamentais, com suas respectivas previsões de recursos constantes da lei orçamentária anual do Plano Plurianual 2004-2007, bem como as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução.
Por outro lado, estabelece uma metodologia que possibilita o desenvolvimento sustentável quilombola em consonância com as especificidades históricas e contemporâneas, garantido os direitos à titulação e a permanência na terra, à documentação básica, alimentação,
saúde, esporte, lazer, moradia adequada, trabalho, serviços de infra-estrutura e previdência social, entre outras políticas públicas destinadas à população brasileira.
Nesta trajetória, rastreiam-se as imagens de uma equação pautada no desafio e na ousadia destinados à promoção da igualdade racial, a partir de programas e medidas de cunho político e administrativo, visando, coletivamente, a inclusão social, na certeza de que está se construindo o novo e produzindo, assim, coesão em torno de uma agenda nacional que estabeleça acordos para promover a cidadania numa longa e contínua caminhada.
Programa Brasil Quilombola
Na segunda metade do século passado, em um momento marca do pela descolonização da África e pelo debate sobre a identidade nacional, vários historiadores revelaram as experiências de organização quilombola sob nova perspectiva. Elas foram observadas não só como recurso útil para a sobrevivência física e cultural daquelas pessoas, mas, acima de tudo, como instrumento de preservação da dignidade de homens e mulheres descendentes dos africanos traficados para o Brasil, que lutaram para reconquistar o direito à liberdade, inerente à sua condição humana, mas também conviver de acordo com a sua cultura tradicional.
Estes novos estudos e pesquisas comprovaram que além dos quilombos remanescentes do período da escravidão, outros quilombos formaram-se após a abolição formal da escravatura, em 1888, pois, continuaram a ser, para muitos, a única possibilidade de viver em liberdade.
I. A Realidade das
Comunidades Remanescentes
de Quilombos
Programa Brasil Quilombola
Programa Brasil Quilombola 9
Constituir um quilombo, então, tornou-se um imperativo de sobre vivência, visto que a Lei Áurea os deixou abandonados à própria sorte. Desprovidos de qualquer patrimônio, vivendo na mais absoluta miséria, os negros recusaram-se a conviver num mesmo espaço com aqueles que os considerava inferiores e não os respeitava na sua humanidade. Além disso, ainda tiveram que enfrentar as resistências e os preconceitos de uma sociedade o qual desprezava sua cultura e a sua visão de mundo.
Várias destas comunidades permanecem agregadas até os dias de hoje, algumas, inclusive, guardando resquícios arqueológicos. O seu reconhecimento não se materializa mais pelo isolamento geográfico –apesar das grandes dificuldades de acesso para alcançar o núcleo residencial de algumas delas – nem pela homogeneidade física ou biológica dos seus habitantes. É mais plausível afirmar que a ligação com o passado reside na manutenção de práticas de resistência e reprodução do seu modo de vida num determinado local onde prevalece
a coletivização dos bens materiais e imateriais.
Deste modo, comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade.
É importante explicitar que, quando se fala em identidade étnica, trata-se de um processo de auto-identificação bastante dinâmico e não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos, como cor da pele, por exemplo.
A identidade étnica de um grupo é a base para sua forma de organização, de sua relação com os demais grupos e de sua ação política. A maneira pela qual os grupos sociais definem a própria identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos: de uma
ancestralidade comum, formas de organização política e social, a elementos lingüísticos e religiosos.
A característica singular que aproxima a dimensão do quilombo no período colonial às mais recentes formas organizativas dos quilombos contemporâneos está presente nas práticas econômicas desenvolvidas, cujos modelos produtivos agrícolas estabelecem uma necessária integração à micro-economia local com vistas à consolidação de um uso comum da terra.
Neste caso, a etnicidade deve ser levada em consideração, além da questão fundiária, ou seja, a terra é crucial para a continuidade do grupo enquanto condição de fixação, mas não como condição exclusiva para a
existência do grupo. E o território não estaria restrito ao espaço
geográfico, mas abarca muito mais: objetos, atitudes, relacionamentos,
enfim, tudo o que afetivamente lhe disser respeito.
Programa Brasil Quilombola
Território e identidade estão intimamente relacionados enquanto um estilo de vida, uma forma de ver, fazer e sentir o mundo. Um espaço social próprio, específico, com formas singulares de transmissão de bens materiais e imateriais para a comunidade. Bens esses que se transformarão no legado de uma memória coletiva, um patrimônio simbólico do grupo.
As especificidades e diferenciais socioculturais devem ser ressaltados, valorizados e priorizados quando da montagem de um modelo de desenvolvimento sustentável para as comunidades quilombolas, conjuntamente com a integração de cinco outras dimensões: sustentabilidade ambiental, social, cultural, econômica e política.
Destas dimensões, na fala recorrente dos quilombolas, algumas ameaças rondam as comunidades onde residem. São elas: a titulação, para garantir o domínio e a posse da terra assegurando, simultaneamente, alternativas viáveis para sua sobrevivência com dignidade, recuperando e renovando sua cultura; a legislação ambiental que não reconhece os direitos das populações tradicionais, e, muitas vezes, favorece tensões e conflitos nas áreas, que inviabilizam sua permanência na terra e a educação, onde as escolas em funcionamento nas comunidades não tem a manutenção garantida nem valorizam a cultura local.
A recente visibilidade da questão quilombola exige uma profunda revisão nos modelos de gestão utilizados para a implementação da política pública. Os quilombos se constituem em um sistema onde as dimensões sociopolíticas, econômicas e culturais são significativas para a construção e atualização de sua identidade. Dessa forma, buscam a eqüidade de maneira peculiar trazendo à tona a discussão do desenvolvimento imbricado na questão da identidade.
Nesta perspectiva, para as comunidades remanescentes de quilombos, a questão fundiária incorpora outra dimensão, pois o território – espaço geográfico-cultural de uso coletivo – diferentemente da terra que é uma necessidade econômica e social, é uma necessidade cultural e política, vinculado ao seu direito de autodeterminação.
Marco histórico contemporâneo de extrema relevância, o pro cesso Constituinte de 1988 propiciou uma ampla mobilização da sociedade civil brasileira. No cerne desta mobilização estavam entidades do movimento negro urbano, buscando incluir dentre os princípios constitucionais a luta quilombola pelo direito à terra e ampliando o debate no campo das políticas públicas acerca da realidade da população negra.
No início dos anos 90, surgiram mudanças significativas, reflexos das pressões internas protagonizadas por estas organizações e externas provocadas pelos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro por meio de tratados e convenções internacionais. Por conseguinte, urge um novo discurso no interior das instituições públicas e privadas, que se materializou no avanço da luta pela promoção da igualdade racial.
II. O Programa
Programa Brasil Quilombola
Como resultado desse processo de mobilização, em novembro de 1995, houve a realização do I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Brasília, nos dias 17, 18 e 19, tendo como tema: Terra, Produção e Cidadania para Quilombolas. Ao final do encontro, uma representação foi escolhida para encaminhar à Presidência da República um documento contendo as principais reivindicações aprovadas. Este encontro antecedeu a Marcha Zumbi dos Palmares, pela vida e cidadania a mais expressiva manifestação política do Movimento Negro Brasileiro, que, no dia 20 de novembro de 1995, reuniu cerca de trinta mil pessoas, na Praça dos Três Poderes, em memória ao Tricentenário de Zumbi dos Palmares, circunscrevendo, formalmente, as contribuições e reivindicações do Movimento Negro para a agenda política nacional.
É neste bojo que a questão quilombola entra no cenário nacional. O reconhecimento legal de direitos específicos, no que diz respeito a título de reconhecimento de domínio para as comunidades quilombolas, ensejou uma nova demanda, gerando proposições legislativas em âmbitos federal e estadual, promovendo a edição de portarias e normas de procedimentos administrativos consoante à formulação de uma política de promoção social para este segmento.
Ante as demandas para regularização fundiária, o Incra publicou a Portaria nº 307 de 22 de novembro de 1995, a qual determinava que se efetuasse a titulação das terras quilombolas sem especificar de maneira detalhada o procedimento a ser adotado.
Diante da ausência dos procedimentos para titulação, no período de 1996 a 1999, foi constituído um Grupo de Trabalho para coordenar as ações do Incra referentes aos remanescentes de quilombos, possibilitando diálogo com os demais órgãos governamentais envolvidos, como Fundação Cultural Palmares, os Institutos de Terras Estaduais e o Ministério Público para debater e propor procedimentos eficazes.
]Apesar do esforço realizado por esse Grupo de Trabalho do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, não houve uma normatização efetiva dos procedimentos administrativos. As poucas iniciativas foram interrompidas pelo Incra em 1999 quando da decisão do governo federal de transferir a competência de titulação das terras de quilombo para o Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares.
Em 13 de Julho de 2000, a Fundação Cultural Palmares publicou a portaria interna de nº 40 (DOU de 14 de julho de 2000), visando estabelecer procedimentos administrativos para a identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e para a delimitação, demarcação e titulação das áreas por eles ocupadas. A principal dificuldade deste período foi localizada na desintrusão das áreas, sem a devida dotação orçamentária, para o pagamento de indenizações de benfeitorias de boa-fé.
Apesar da existência desta norma que reconhece a propriedade definitiva e atribui ao Estado o dever de emitir os títulos respectivos, passados 16 anos, verifica-se que apenas 71 comunidades de um total de 743 comunidades registradas oficialmente, passaram por processos de titulação.
Desde o ano de 2003, o governo federal vem procurando readequar os princípios da política que orienta a sua ação para as comunidades remanescentes de quilombo, dando-lhe maior objetividade na busca de superação dos entraves jurídicos, orçamentários e operacionais, que impediam a plena realização dos seus objetivos.
Em 2004, é criado o Programa Brasil Quilombola, cuja finalidade precípua é coordenar as ações governamentais para as comunidades remanescentes de quilombo por meio de articulações transversais, setoriais e interinstitucionais, com ênfase na participação da sociedade civil. O Programa é coordenado por meio Seppir, junto à da Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais e conta com 21 órgãos da administração pública federal.
Apesar de ser uma política do governo federal, o Programa mantém uma interlocução permanente com os entes federativos e as representações dos órgãos federais nos estados, a exemplo do Incra, Ibama, Delegacias Regionais do Trabalho, Funasa, entre outros, no intuito de descentralizar e agilizar as respostas do governo para as comunidades remanescentes de quilombo. Os governos municipais têm, neste contexto, uma função singular por responsabilizar-se, em última instância, pela execução da política em cada localidade.
O conjunto de ações inseridas no Programa é oriundo dos órgãos governamentais que integram o Comitê Gestor e são compatíveis com os respectivos recursos, constantes na lei orçamentária do Plano Plurianual 2004-2007, onde se prevê também as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução. A definição das ações mais apropriadas para cada órgão é consolidada levando em consideração as demandas presentes nas comunidades.
Esta falsa idéia decorreu do fato das comunidades terem permanecido isoladas durante parte do século passado. Foi uma estratégia intencional que garantiu a sua sobrevivência como um grupo organizado com tradições e relações territoriais próprias e, por conseguinte, com direito a ser respeitado nas suas especificidades, as quais foram significativas para a construção e atualização de sua identidade étnica, cultural, reprodução física e social.
Desde então, o pleito pela garantia do acesso a terra, relacionando-o ao fator da identidade étnica como condição essencial, tornou-se uma constante, como forma de compensar a injustiça histórica cometida contra a população negra, aliado à preservação do patrimônio cultural brasileiro em seus bens de natureza material e imaterial.
Introdução
Alterar as condições de vida nas comunidades remanescentes de quilombos por meio da regularização da posse da terra, estimular o seu desenvolvimento e apoiar as associações representativas destas comunidades são objetivos estratégicos que visam o desenvolvimento sustentável destas comunidades, com a garantia de que os respectivos direitos sejam elaborados, como também implementados.
Para tanto, o governo federal cria em 12 de março de 2004, na comunidade remanescente de Kalunga, situada nos municípios de Cavalcanti, Teresina de Goiás e Monte Alegre, no estado de Goiás, o PROGRAMA BRASIL QUILOMBOLA, como uma política de Estado para as áreas remanescentes de quilombos, abrangendo um conjunto de ações inseridas nos diversos órgãos governamentais, com suas respectivas previsões de recursos constantes da lei orçamentária anual do Plano Plurianual 2004-2007, bem como as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução.
Por outro lado, estabelece uma metodologia que possibilita o desenvolvimento sustentável quilombola em consonância com as especificidades históricas e contemporâneas, garantido os direitos à titulação e a permanência na terra, à documentação básica, alimentação,
saúde, esporte, lazer, moradia adequada, trabalho, serviços de infra-estrutura e previdência social, entre outras políticas públicas destinadas à população brasileira.
Nesta trajetória, rastreiam-se as imagens de uma equação pautada no desafio e na ousadia destinados à promoção da igualdade racial, a partir de programas e medidas de cunho político e administrativo, visando, coletivamente, a inclusão social, na certeza de que está se construindo o novo e produzindo, assim, coesão em torno de uma agenda nacional que estabeleça acordos para promover a cidadania numa longa e contínua caminhada.
Programa Brasil Quilombola
Na segunda metade do século passado, em um momento marca do pela descolonização da África e pelo debate sobre a identidade nacional, vários historiadores revelaram as experiências de organização quilombola sob nova perspectiva. Elas foram observadas não só como recurso útil para a sobrevivência física e cultural daquelas pessoas, mas, acima de tudo, como instrumento de preservação da dignidade de homens e mulheres descendentes dos africanos traficados para o Brasil, que lutaram para reconquistar o direito à liberdade, inerente à sua condição humana, mas também conviver de acordo com a sua cultura tradicional.
Estes novos estudos e pesquisas comprovaram que além dos quilombos remanescentes do período da escravidão, outros quilombos formaram-se após a abolição formal da escravatura, em 1888, pois, continuaram a ser, para muitos, a única possibilidade de viver em liberdade.
I. A Realidade das
Comunidades Remanescentes
de Quilombos
Programa Brasil Quilombola
Programa Brasil Quilombola 9
Constituir um quilombo, então, tornou-se um imperativo de sobre vivência, visto que a Lei Áurea os deixou abandonados à própria sorte. Desprovidos de qualquer patrimônio, vivendo na mais absoluta miséria, os negros recusaram-se a conviver num mesmo espaço com aqueles que os considerava inferiores e não os respeitava na sua humanidade. Além disso, ainda tiveram que enfrentar as resistências e os preconceitos de uma sociedade o qual desprezava sua cultura e a sua visão de mundo.
Várias destas comunidades permanecem agregadas até os dias de hoje, algumas, inclusive, guardando resquícios arqueológicos. O seu reconhecimento não se materializa mais pelo isolamento geográfico –apesar das grandes dificuldades de acesso para alcançar o núcleo residencial de algumas delas – nem pela homogeneidade física ou biológica dos seus habitantes. É mais plausível afirmar que a ligação com o passado reside na manutenção de práticas de resistência e reprodução do seu modo de vida num determinado local onde prevalece
a coletivização dos bens materiais e imateriais.
Deste modo, comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade.
É importante explicitar que, quando se fala em identidade étnica, trata-se de um processo de auto-identificação bastante dinâmico e não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos, como cor da pele, por exemplo.
A identidade étnica de um grupo é a base para sua forma de organização, de sua relação com os demais grupos e de sua ação política. A maneira pela qual os grupos sociais definem a própria identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos: de uma
ancestralidade comum, formas de organização política e social, a elementos lingüísticos e religiosos.
A característica singular que aproxima a dimensão do quilombo no período colonial às mais recentes formas organizativas dos quilombos contemporâneos está presente nas práticas econômicas desenvolvidas, cujos modelos produtivos agrícolas estabelecem uma necessária integração à micro-economia local com vistas à consolidação de um uso comum da terra.
Neste caso, a etnicidade deve ser levada em consideração, além da questão fundiária, ou seja, a terra é crucial para a continuidade do grupo enquanto condição de fixação, mas não como condição exclusiva para a
existência do grupo. E o território não estaria restrito ao espaço
geográfico, mas abarca muito mais: objetos, atitudes, relacionamentos,
enfim, tudo o que afetivamente lhe disser respeito.
Programa Brasil Quilombola
Território e identidade estão intimamente relacionados enquanto um estilo de vida, uma forma de ver, fazer e sentir o mundo. Um espaço social próprio, específico, com formas singulares de transmissão de bens materiais e imateriais para a comunidade. Bens esses que se transformarão no legado de uma memória coletiva, um patrimônio simbólico do grupo.
As especificidades e diferenciais socioculturais devem ser ressaltados, valorizados e priorizados quando da montagem de um modelo de desenvolvimento sustentável para as comunidades quilombolas, conjuntamente com a integração de cinco outras dimensões: sustentabilidade ambiental, social, cultural, econômica e política.
Destas dimensões, na fala recorrente dos quilombolas, algumas ameaças rondam as comunidades onde residem. São elas: a titulação, para garantir o domínio e a posse da terra assegurando, simultaneamente, alternativas viáveis para sua sobrevivência com dignidade, recuperando e renovando sua cultura; a legislação ambiental que não reconhece os direitos das populações tradicionais, e, muitas vezes, favorece tensões e conflitos nas áreas, que inviabilizam sua permanência na terra e a educação, onde as escolas em funcionamento nas comunidades não tem a manutenção garantida nem valorizam a cultura local.
A recente visibilidade da questão quilombola exige uma profunda revisão nos modelos de gestão utilizados para a implementação da política pública. Os quilombos se constituem em um sistema onde as dimensões sociopolíticas, econômicas e culturais são significativas para a construção e atualização de sua identidade. Dessa forma, buscam a eqüidade de maneira peculiar trazendo à tona a discussão do desenvolvimento imbricado na questão da identidade.
Nesta perspectiva, para as comunidades remanescentes de quilombos, a questão fundiária incorpora outra dimensão, pois o território – espaço geográfico-cultural de uso coletivo – diferentemente da terra que é uma necessidade econômica e social, é uma necessidade cultural e política, vinculado ao seu direito de autodeterminação.
Marco histórico contemporâneo de extrema relevância, o pro cesso Constituinte de 1988 propiciou uma ampla mobilização da sociedade civil brasileira. No cerne desta mobilização estavam entidades do movimento negro urbano, buscando incluir dentre os princípios constitucionais a luta quilombola pelo direito à terra e ampliando o debate no campo das políticas públicas acerca da realidade da população negra.
No início dos anos 90, surgiram mudanças significativas, reflexos das pressões internas protagonizadas por estas organizações e externas provocadas pelos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro por meio de tratados e convenções internacionais. Por conseguinte, urge um novo discurso no interior das instituições públicas e privadas, que se materializou no avanço da luta pela promoção da igualdade racial.
II. O Programa
Programa Brasil Quilombola
Como resultado desse processo de mobilização, em novembro de 1995, houve a realização do I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Brasília, nos dias 17, 18 e 19, tendo como tema: Terra, Produção e Cidadania para Quilombolas. Ao final do encontro, uma representação foi escolhida para encaminhar à Presidência da República um documento contendo as principais reivindicações aprovadas. Este encontro antecedeu a Marcha Zumbi dos Palmares, pela vida e cidadania a mais expressiva manifestação política do Movimento Negro Brasileiro, que, no dia 20 de novembro de 1995, reuniu cerca de trinta mil pessoas, na Praça dos Três Poderes, em memória ao Tricentenário de Zumbi dos Palmares, circunscrevendo, formalmente, as contribuições e reivindicações do Movimento Negro para a agenda política nacional.
É neste bojo que a questão quilombola entra no cenário nacional. O reconhecimento legal de direitos específicos, no que diz respeito a título de reconhecimento de domínio para as comunidades quilombolas, ensejou uma nova demanda, gerando proposições legislativas em âmbitos federal e estadual, promovendo a edição de portarias e normas de procedimentos administrativos consoante à formulação de uma política de promoção social para este segmento.
Ante as demandas para regularização fundiária, o Incra publicou a Portaria nº 307 de 22 de novembro de 1995, a qual determinava que se efetuasse a titulação das terras quilombolas sem especificar de maneira detalhada o procedimento a ser adotado.
Diante da ausência dos procedimentos para titulação, no período de 1996 a 1999, foi constituído um Grupo de Trabalho para coordenar as ações do Incra referentes aos remanescentes de quilombos, possibilitando diálogo com os demais órgãos governamentais envolvidos, como Fundação Cultural Palmares, os Institutos de Terras Estaduais e o Ministério Público para debater e propor procedimentos eficazes.
]Apesar do esforço realizado por esse Grupo de Trabalho do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, não houve uma normatização efetiva dos procedimentos administrativos. As poucas iniciativas foram interrompidas pelo Incra em 1999 quando da decisão do governo federal de transferir a competência de titulação das terras de quilombo para o Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares.
Em 13 de Julho de 2000, a Fundação Cultural Palmares publicou a portaria interna de nº 40 (DOU de 14 de julho de 2000), visando estabelecer procedimentos administrativos para a identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e para a delimitação, demarcação e titulação das áreas por eles ocupadas. A principal dificuldade deste período foi localizada na desintrusão das áreas, sem a devida dotação orçamentária, para o pagamento de indenizações de benfeitorias de boa-fé.
Apesar da existência desta norma que reconhece a propriedade definitiva e atribui ao Estado o dever de emitir os títulos respectivos, passados 16 anos, verifica-se que apenas 71 comunidades de um total de 743 comunidades registradas oficialmente, passaram por processos de titulação.
Desde o ano de 2003, o governo federal vem procurando readequar os princípios da política que orienta a sua ação para as comunidades remanescentes de quilombo, dando-lhe maior objetividade na busca de superação dos entraves jurídicos, orçamentários e operacionais, que impediam a plena realização dos seus objetivos.
Em 2004, é criado o Programa Brasil Quilombola, cuja finalidade precípua é coordenar as ações governamentais para as comunidades remanescentes de quilombo por meio de articulações transversais, setoriais e interinstitucionais, com ênfase na participação da sociedade civil. O Programa é coordenado por meio Seppir, junto à da Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais e conta com 21 órgãos da administração pública federal.
Apesar de ser uma política do governo federal, o Programa mantém uma interlocução permanente com os entes federativos e as representações dos órgãos federais nos estados, a exemplo do Incra, Ibama, Delegacias Regionais do Trabalho, Funasa, entre outros, no intuito de descentralizar e agilizar as respostas do governo para as comunidades remanescentes de quilombo. Os governos municipais têm, neste contexto, uma função singular por responsabilizar-se, em última instância, pela execução da política em cada localidade.
O conjunto de ações inseridas no Programa é oriundo dos órgãos governamentais que integram o Comitê Gestor e são compatíveis com os respectivos recursos, constantes na lei orçamentária do Plano Plurianual 2004-2007, onde se prevê também as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução. A definição das ações mais apropriadas para cada órgão é consolidada levando em consideração as demandas presentes nas comunidades.
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